Perpétua

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“Hoje (…)

estou contente, estou preparada.

Não tenho medo…

vou, por fim, saber…

Diga-lhes,

se puder…

Sinto-me cansada,

Espere!

Falta alguma coisa…

talvez esta seja a última palavra…

Tudo fica no escuro.”

Durante um longo período de tempo, comportou-se de forma invulgar. Embateu várias vezes contra as esquinas dos móveis, calculou mal as curvas ao virar os corredores. Num Sábado de tarde, ao escurecer, confessou-me, um pouco a medo, andar ocupado com “formas não familiares da matéria”. Parecia distraído, macambúzio, sorumbático, como se num estado de concentração ensimesmada, mas do avesso. Em diversas situações fui surpreendido com a sua aparição, como se emergisse silenciosamente das sombras, feito alma-penada a vaguear desamparada pela penumbra. Aparentava gostar de lugares-mortos.

Consta ter sofrido penosas assombrações espontâneas e súbitas experiências “fora do   corpo”. Dizia ouvir, de quando em quando, pessoas reunidas, de ambos os sexos – falavam todas ao mesmo tempo e de “assuntos muito sérios”, ao que parece…

Ficou registado que era capaz de fazer levitar objectos invulgarmente pesados, ou trazer a si “o que bem entendesse”. Nos últimos tempos, dedicou-se com grande afinco a uma desordenada série de escritos autómatos, num estado semelhante a um transe, “entregando a mão a uma vontade alheia”. Articulava mensagens estapafúrdias num estilo muito diferente do habitual.

Em algumas conversas ocasionais, aparentemente disparatadas (agora, à distância, todas elas parecem fazer algum sentido) falou-me de uma certa mulher, ou alguém a fazer-se passar por tal, que o andaria a importunar por causa de uma questão irresolúvel, ou um qualquer mal-entendido. (texto disponibilizado para a exposição “Perpétua”, no Espaço Gesto)

Tenho um fascínio especial por aqueles que dizem ser capazes de estabelecer contacto com as criaturas do além. Videntes, bruxos, médiuns de incorporação, todos eles reclamam para si o papel de intermediários, tradutores de mensagens e comunicações provenientes de um outro mundo, de uma outra espécie de vida ou existência. Os mortos, as almas penadas, parecem querer, à viva força, dizer-nos qualquer coisa, algo que ficou por dizer enquanto ainda havia forma. No entanto, as mensagens chegam-nos sempre desconexas, estapafúrdias. O derradeiro e inevitável obstáculo à transmissão de um qualquer segredo que exista para além da matéria: o médium. Na maior parte das vezes, fica a impressão de que não importa tanto aquilo que é dito, a justeza e adequação da tradução, mas sim, o acto de comunicar em si mesmo.

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